Quando o Mérito é Enterrado pela Apatia
"É preciso endurecer-se, mas sem jamais perder a ternura." – Ernesto Che Guevara
Acordávamos ao som dos galos, aqueles mesmos galos que traziam nas suas vozes as cicatrizes de uma história que o tempo não apagou, uma resistência surda contra a erosão implacável da vida. Não havia escolha. No silêncio sombrio da madrugada, éramos atirados às estradas poeirentas, rasgando a terra seca em busca de água, cavando nos poços como quem escava as profundezas do próprio desespero. A luta contra a seca não era apenas uma batalha contra a natureza; era uma guerra cravada nas nossas entranhas, uma contenda diária pela dignidade. Os anciãos, sempre silenciosos, não precisavam gritar. O arqueamento de suas costas dizia tudo: o sacrifício, a fome, a dor de ver filhos e netos partirem cedo demais, vencidos pela crueldade do destino. Esses velhos não falavam de morte, porque a carregavam nos ossos.
E nós? Nós, filhos dessa terra, herdeiros de uma resistência que muitas vezes nem compreendemos, estamos hoje frente a frente com uma modernidade que nos insulta. Como ousamos nos considerar merecedores de qualquer coisa quando o que temos nos foi dado sem que suássemos, sem que cavássemos até as mãos sangrarem? Eu, que caminhei lado a lado com esses velhos, sinto uma vergonha profunda. A facilidade moderna é como um veneno que se infiltra lentamente, corroendo nossa dignidade, enfraquecendo-nos até à apatia. É de enlouquecer ver como a mediocridade reina e a ignorância se espalha como uma praga.
Caminhava pelas ruas de Tarrafal quando me deparei com uma faixa grotesca, anunciando uma "Gala da Juventude". Ri por dentro, com cinismo, mas logo um dos vereadores me cortou o prazer quando resolveu finkar musura e rebolar sem do do rebolado no palco ao som da suave, artística, poderoso batuku das mossas ramantxadas liderada pela Marisa que se tornou uma verdadeira artista, criou a pulso e se tornou autoridade nisso. Contudo logo me vem a questão: Uma gala para quem? Para juventude, e quando é para juventude ele tem os seus princípios e reza que se deve cumprir. Deve em ultima analise, ser para os que suaram e se sacrificaram, para os que, como Txumamai e Anilton Levy, Zidane, Danilson, Jailson, Manecas, Txu, Claudio Ribeiro, Marcos.. se destacaram em diferentes áreas – do desporto à cultura, das tecnologias ao empreendedorismo? Eles colocaram o município e o país no mapa com o suor do seu esforço. Mas esta gala parecia apenas mais um espetáculo vazio, um circo montado para exibir rostos sem substância. Não que os presentes não valessem algo, mas a verdadeira massa de méritos estava fora daquele evento.
Uma gala, se fosse justa, deveria ser um tributo à verdadeira essência da juventude – premiar a excelência, o esforço genuíno, a inovação nas áreas de educação, desporto, cultura, empreendedorismo, solidariedade. Mas o que vejo é um teatro, uma desconexão abissal. A juventude, com todo o seu potencial, é sufocada por um sistema que a controla. Como bem disse Zygmunt Bauman, "vivemos em tempos líquidos". As conquistas são como água entre os dedos – tudo se dissolve rapidamente, sem deixar marcas. Onde está a raiva, a fúria que deveria incendiar a juventude? Foi domada, silenciada, moldada pela política, pela religião, por líderes sem visão que vendem sonhos vazios enquanto vivem do mérito dos outros.
Eu, por outro lado, nunca me permiti ser domado. Errei, sim, muitas vezes. Mas sempre me exigi mais, sempre soube que o verdadeiro mérito vem do sacrifício. Aos treze anos, já estava no mercado de trabalho, e hoje, com a mesma fúria, continuo nele. Recordo-me vividamente de como a vida me ensinou o valor do esforço. Não eram galas que me prometiam sucesso, mas a promessa humilde da minha mãe: “Terás sandálias novas se tiveres boas notas”, ela dizia. E eu corria atrás desse prémio como se fosse a coisa mais importante do mundo. Hoje, é fundamental que os jovens envelheçam cedo para compreenderem o valor do verdadeiro palco e dos prémios com significado real.
As verdadeiras celebrações não aconteciam em salões de gala, mas em casa, ao redor de uma mesa, onde o respeito era forjado no calor do trabalho árduo, não nas luzes de um palco. Caminhávamos quilómetros em busca de água, carregávamos lenha, apanhávamos bosta de vaca para os campos. E, ainda assim, encontrávamos tempo para os estudos e para o desporto. O esforço era a nossa maior lição, e quem aprendeu a valorizar-se pelo suor do próprio trabalho não se rende facilmente ao facilitismo.
Hoje, assisto a uma geração sendo premiada sem ter sujado as mãos, sem ter construído nada concreto. Ser destacado sem mérito é ser empurrado para o abismo da mediocridade. Como bem observou Angela Davis, “não aceito mais as coisas que não posso mudar, estou mudando as coisas que não posso aceitar”. E é disso que precisamos – de coragem para rejeitar o que nos é dado sem merecimento, de força para traçar a nossa própria trajetória, com as mãos calejadas de tanto lutar.
Que esta geração compreenda que o verdadeiro reconhecimento não vem de palcos iluminados, mas das sombras, onde o esforço é moldado no silêncio. Que reconheçam que a grandeza não é concedida, mas conquistada. Como escreveu Mia Couto, “o mundo não se faz com o que sonhamos, mas com o que fazemos”. E é isso que nos falta – fazer. Deixar de lado os sonhos vazios e construir algo sólido, algo real. Que esta geração encontre em si mesma a força dos nossos anciãos, que enfrentaram a vida e seus desafios com a coragem que nos permitiu chegar até aqui. Nestes 100 anos de nascimento de Amílcar Cabral, peço que façam e se sintam Cabral por um dia ou pelos próximos 100 dias. Cansa, mas vale a pena – cada um no seu tempo.
Que façamos, portanto, a nossa parte.
Mário Loff