Halloween party ideas 2015

Publicidade




"É preciso endurecer-se, mas sem jamais perder a ternura." – Ernesto Che Guevara


Acordávamos ao som dos galos, aqueles mesmos galos que traziam nas suas vozes as cicatrizes de uma história que o tempo não apagou, uma resistência surda contra a erosão implacável da vida. Não havia escolha. No silêncio sombrio da madrugada, éramos atirados às estradas poeirentas, rasgando a terra seca em busca de água, cavando nos poços como quem escava as profundezas do próprio desespero. A luta contra a seca não era apenas uma batalha contra a natureza; era uma guerra cravada nas nossas entranhas, uma contenda diária pela dignidade. Os anciãos, sempre silenciosos, não precisavam gritar. O arqueamento de suas costas dizia tudo: o sacrifício, a fome, a dor de ver filhos e netos partirem cedo demais, vencidos pela crueldade do destino. Esses velhos não falavam de morte, porque a carregavam nos ossos.

E nós? Nós, filhos dessa terra, herdeiros de uma resistência que muitas vezes nem compreendemos, estamos hoje frente a frente com uma modernidade que nos insulta. Como ousamos nos considerar merecedores de qualquer coisa quando o que temos nos foi dado sem que suássemos, sem que cavássemos até as mãos sangrarem? Eu, que caminhei lado a lado com esses velhos, sinto uma vergonha profunda. A facilidade moderna é como um veneno que se infiltra lentamente, corroendo nossa dignidade, enfraquecendo-nos até à apatia. É de enlouquecer ver como a mediocridade reina e a ignorância se espalha como uma praga.

Caminhava pelas ruas de Tarrafal quando me deparei com uma faixa grotesca, anunciando uma "Gala da Juventude". Ri por dentro, com cinismo, mas logo um dos vereadores me cortou o prazer quando resolveu finkar musura e rebolar sem do do rebolado no palco ao som da suave, artística, poderoso batuku das mossas ramantxadas liderada pela Marisa que se tornou uma verdadeira artista, criou a pulso e se tornou autoridade nisso. Contudo logo me vem a questão: Uma gala para quem? Para juventude, e quando é para juventude ele tem os seus princípios e reza que se deve cumprir. Deve em ultima analise, ser para os que suaram e se sacrificaram, para os que, como Txumamai e Anilton Levy, Zidane, Danilson, Jailson, Manecas, Txu, Claudio Ribeiro, Marcos.. se destacaram em diferentes áreas – do desporto à cultura, das tecnologias ao empreendedorismo? Eles colocaram o município e o país no mapa com o suor do seu esforço. Mas esta gala parecia apenas mais um espetáculo vazio, um circo montado para exibir rostos sem substância. Não que os presentes não valessem algo, mas a verdadeira massa de méritos estava fora daquele evento.

Uma gala, se fosse justa, deveria ser um tributo à verdadeira essência da juventude – premiar a excelência, o esforço genuíno, a inovação nas áreas de educação, desporto, cultura, empreendedorismo, solidariedade. Mas o que vejo é um teatro, uma desconexão abissal. A juventude, com todo o seu potencial, é sufocada por um sistema que a controla. Como bem disse Zygmunt Bauman, "vivemos em tempos líquidos". As conquistas são como água entre os dedos – tudo se dissolve rapidamente, sem deixar marcas. Onde está a raiva, a fúria que deveria incendiar a juventude? Foi domada, silenciada, moldada pela política, pela religião, por líderes sem visão que vendem sonhos vazios enquanto vivem do mérito dos outros.

Eu, por outro lado, nunca me permiti ser domado. Errei, sim, muitas vezes. Mas sempre me exigi mais, sempre soube que o verdadeiro mérito vem do sacrifício. Aos treze anos, já estava no mercado de trabalho, e hoje, com a mesma fúria, continuo nele. Recordo-me vividamente de como a vida me ensinou o valor do esforço. Não eram galas que me prometiam sucesso, mas a promessa humilde da minha mãe: “Terás sandálias novas se tiveres boas notas”, ela dizia. E eu corria atrás desse prémio como se fosse a coisa mais importante do mundo. Hoje, é fundamental que os jovens envelheçam cedo para compreenderem o valor do verdadeiro palco e dos prémios com significado real.

As verdadeiras celebrações não aconteciam em salões de gala, mas em casa, ao redor de uma mesa, onde o respeito era forjado no calor do trabalho árduo, não nas luzes de um palco. Caminhávamos quilómetros em busca de água, carregávamos lenha, apanhávamos bosta de vaca para os campos. E, ainda assim, encontrávamos tempo para os estudos e para o desporto. O esforço era a nossa maior lição, e quem aprendeu a valorizar-se pelo suor do próprio trabalho não se rende facilmente ao facilitismo.

Hoje, assisto a uma geração sendo premiada sem ter sujado as mãos, sem ter construído nada concreto. Ser destacado sem mérito é ser empurrado para o abismo da mediocridade. Como bem observou Angela Davis, “não aceito mais as coisas que não posso mudar, estou mudando as coisas que não posso aceitar”. E é disso que precisamos – de coragem para rejeitar o que nos é dado sem merecimento, de força para traçar a nossa própria trajetória, com as mãos calejadas de tanto lutar.

Que esta geração compreenda que o verdadeiro reconhecimento não vem de palcos iluminados, mas das sombras, onde o esforço é moldado no silêncio. Que reconheçam que a grandeza não é concedida, mas conquistada. Como escreveu Mia Couto, “o mundo não se faz com o que sonhamos, mas com o que fazemos”. E é isso que nos falta – fazer. Deixar de lado os sonhos vazios e construir algo sólido, algo real. Que esta geração encontre em si mesma a força dos nossos anciãos, que enfrentaram a vida e seus desafios com a coragem que nos permitiu chegar até aqui. Nestes 100 anos de nascimento de Amílcar Cabral, peço que façam e se sintam Cabral por um dia ou pelos próximos 100 dias. Cansa, mas vale a pena – cada um no seu tempo.

Que façamos, portanto, a nossa parte.


Mário Loff





O burro chegou ao antigo Ponte de São Domingos com as narinas soltando gotas de água, como se o próprio ar estivesse impregnado de cansaço. Atrás dele, a neblina espessa engolia a paisagem, ocultando tudo o que existia além de alguns passos. Mas o som ofegante de uma respiração exausta revelava a presença de um homem sentado, cuja silhueta se fundia com a névoa, como uma sombra perdida no tempo. Ele apoiava-se na ponte de pedra, um testemunho das eras passadas, quando atravessar aquelas rochas era uma jornada vital para sobreviver e aventurar-se no interior da ilha de Santiago, enfrentando bruxas.

O rio, serpenteando lá em baixo no vale, sussurrava como um canto de despedida das chuvas que se demoraram muito além do esperado. Três meses de chuva eram aguardados, mas o céu, que recebeu muitas rezas naquele ano, ora generoso, ora implacável, estendeu sua cortina aquosa por seis longos meses. Valeu a pena ter benzido na passagem em frente a todas as igrejas das ilhas, comentavam todos os homens que permaneceram na terra.

A ilha, envolta num manto verde que se estendia até o horizonte, não conhecia outra cor. Parecia que as montanhas estavam vestidas com o véu do mistério, cada folha um segredo, cada gota de orvalho uma história não contada.

O tempo, naquela manhã, parecia escorrer lentamente, como se cada segundo fosse uma eternidade suspensa. O céu, carregado de nuvens densas como flocos de algodão, obscurecia a visão, e os homens lembravam-se de uma vida distante, nas terras que haviam deixado para trás. As viaturas, outrora rápidas nas estradas sinuosas, agora repousavam imóveis, como se o mundo estivesse em uma pausa contemplativa. E nesse cenário de espera, os homens reinventavam as suas vidas. As terras, antes abandonadas e sem promessa, agora floresciam, como se a própria terra tivesse decidido sonhar junto com eles, esticando-se em paus e enxadas.

Quando o meio-dia se aproximou e a neblina começou a se dissipar, o burro e o homem emergiram lentamente, como figuras esculpidas na bruma. O rosto do homem era estranho aos olhos dos habitantes de São Domingos, um enigma que ninguém podia decifrar. O burro, por sua vez, firmemente plantado na ponte, recusava-se a dar um passo adiante, como se aquele fosse o seu destino final, uma escolha feita pela própria alma.

— Anda, burro! — gritou o homem, sua voz tingida de impaciência, cortando o ar como um açoite.

O burro, contudo, permanecia imóvel, como se estivesse enraizado na pedra, desafiando as ordens com uma teimosia que transcendia o simples entendimento. O homem, já perdendo a paciência, levantava a voz num crescendo de frustração.

— Vamos, burro! Anda logo!

E, no entanto, o burro continuava firme, como se tivesse decidido que aquele era o lugar onde devia estar, ignorando as palavras impacientes do homem.

— Vou-te bater, seu burro, burro!

Nesse instante, o burro virou a cabeça, os olhos escuros fixando-se nos do homem, como se quisesse dizer algo, como se desafiasse o próprio tempo. E então, numa voz que parecia surgir das profundezas da terra, o burro falou.

— Por que tanta pressa, homem? Não vês que o caminho à frente é incerto? Talvez seja melhor parar e pensar no que realmente procuras.

O homem, surpreso, deu um passo para trás, como se não pudesse acreditar no que ouvia. Mas a voz do burro tinha um peso, uma gravidade que o obrigava a ouvir.

— O que eu procuro? Procuro sobreviver, trabalhar a terra, arrancar da vida o que ela me oferece. — respondeu o homem, ainda desconcertado.

— Trabalhar a terra é um ato de fé, homem. — disse o burro, suavemente. — Fé de que o solo dará frutos, de que as chuvas virão na hora certa. Mas e o que fazes quando a chuva não vem? Quando o solo te nega? A esperança de viver aqui não está apenas na terra, mas naquilo que cultivamos dentro de nós.

O homem ficou em silêncio, sentindo o peso das palavras do burro. Olhou para as montanhas ao longe, cobertas pelo manto verde, e pela primeira vez percebeu que o que fazia ali, naquele pedaço de mundo, era mais do que apenas sobreviver. Era uma luta contra as adversidades, sim, mas também uma declaração de amor à vida, à terra que o sustentava.

— Tens razão, burro. — disse ele, finalmente. — Sempre pensei que a terra era tudo, que bastava trabalhar duro para viver. Mas vejo agora que é preciso mais. É preciso esperança, amor... E isso eu tenho negligenciado.

— O amor ao próximo, homem, é como a chuva que esperamos. Ele alimenta a alma, enche os vazios que a terra não pode preencher. — o burro continuou. — Quando te dedicas à terra, também te dedicas aos que dela dependem. Somos todos parte de algo maior, e é isso que nos mantém firmes, mesmo quando o caminho é árduo.

— E tu, burro, o que sabes do amor? — perguntou o homem, meio brincando, mas com genuína curiosidade.

— Sei que o amor é uma força que nos une, homem. — respondeu o burro, com uma serenidade que desarmava. — Olha para nós, tu e eu. Somos diferentes na forma, mas iguais na essência. Ambos carregamos fardos, ambos procuramos o nosso lugar no mundo. E, no fundo, queremos o mesmo: encontrar um sentido, uma razão para seguir em frente.

O homem se aproximou do burro, acariciando-lhe o pescoço, sentindo a textura áspera dos pelos, o calor que emanava do animal. Havia uma verdade profunda nas palavras do burro, uma sabedoria antiga que ele não podia ignorar.

— Talvez sejamos mais parecidos do que eu pensava, burro. — admitiu o homem, com um sorriso cansado. — Ambos somos teimosos, ambos queremos algo mais do que apenas sobreviver. E talvez... talvez eu deva aprender contigo.

— A vida, homem, é um campo vasto e incerto. — disse o burro, com os olhos brilhando de compreensão. — Mas se caminharmos juntos, se partilharmos o fardo, a jornada torna-se mais leve. Não se trata apenas de trabalhar a terra, mas de cultivar o que está dentro de nós. E nisso, homem, somos iguais.

O homem assentiu, sentindo uma nova conexão, uma espécie de irmandade entre ele e o burro. E ali, na Ponte de São Domingos, sob o céu que começava a clarear, eles permaneceram por um momento, em silêncio, compreendendo que, às vezes, é preciso parar e ouvir as lições que o mundo, na sua simplicidade, tem para ensinar.

Quando o homem finalmente se preparou para seguir em frente, o burro, como que compreendendo a mudança que havia ocorrido, deu um passo adiante, pronto para continuar a jornada. Mas agora, não eram apenas homem e burro — eram companheiros, cada um refletindo no outro a esperança e o amor que a terra, em sua sabedoria, havia plantado neles.

E juntos, sob o céu de Cabo Verde, observaram passarinhos a cantar, e o homem retirou a sua luneta verde dos olhos do burro e tudo voltou ao normal, mas a lição de se tornar mais humano já tinha sido imprimida dentro dele.

 Mário Loff


Tecnologia do Blogger.