Independência com espinhas
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Celso Ribeiro |
Ele está ali, erguido atrás do vidro frio do púlpito, como se fosse uma vitrine que denuncia as raivas e ameaças por vir depois do discurso. O fato azul bem passado não disfarça as rugas da história, nem o nó da gravata verde limão consegue dar um ar de primavera a este inverno cerimonial na Casa Parlamentar, num país que se engalana para festejar meio século de independência, ergueu-se uma voz diferente, não para atirar confetes ao passado, mas para sacudi-los do tapete onde os escondemos com tanto zelo. Celso Ribeiro, deputado do MpD, não se limitou a debitar o catálogo habitual de frases em saldo para as câmaras. Não veio vender slogans empacotados em celofane patriótico. Preferiu entregar-se ao sublime incómodo de quem, num momento solene, ousa dizer a verdade, aquela que não cabe em brochuras turísticas nem em discursos de ocasião.
Eric Hobsbawm lembrava que a história é o que dói recordar. José
Mattoso, historiador de
profissão, mas moralista por vocação, advertia que o maior dever de quem estuda o passado é dar voz ao
silêncio. Celso Ribeiro não é historiador,
naquele dia, fez-se historiador improvisado no Parlamento. Recusou a anestesia
oficial que transforma memória em narcótico. Porque celebrar não é
esquecer. Cinquenta anos de independência não são propriedade privada de um
partido, de uma geração, nem de certos guardiões autoproclamados da narrativa.
Não são matéria para fanfarra amnésica, nem para redacções de quarta classe, diria aquele humorista
conhecido que tanto preza a pontaria do sarcasmo.
Os donos do “não estraguem a festa”! Esses têm comichão só de ouvir
falar no partido único, nas prisões arbitrárias no Tarrafal, na mordaça à
imprensa, nos exílios forçados. São os mesmos que murmuram, com ar de padres em
confissão, que “não é o momento”, como se a verdade histórica precisasse de
pedir licença, marcar consulta, trazer atestado médico para se apresentar em
público.
Celso
Ribeiro recusou esse conforto almofadado. Disse, sem floreados: «O momento é
agora.» Porque meio século depois não se pode aclamar a liberdade sem lembrar
que ela foi sequestrada. Não se pode bater palmas à democracia sem lembrar que
ela não veio embrulhada de fábrica no pacote da independência. Teve de ser
arrancada à força, e só
chegou quinze anos depois. Foi um
murro na mesa. Mas um murro civilizado, no melhor estilo de Natalie Zemon
Davis, que dizia que contar histórias incómodas não serve para dividir, mas
para reconciliar.
E não foi só retórica: Ribeiro
abriu a caixa de verdades mal arquivadas. Lembrou a proibição da manifestação
da UPICV em Novembro de 1974. O assalto à Rádio Barlavento em Dezembro. As
deportações para o Tarrafal,
não o colonial, mas o do próprio Estado cabo-verdiano, que enviava para lá
irmãos sem culpa formada.
Não são boatos. São factos.
Datas. Arquivos. Testemunhos. Coisas que não aparecem em folhetos partidários
impressos à pressa, mas se encontram em relatórios diplomáticos portugueses
guardados no Arquivo Histórico de Cabo Verde e no Arquivo Histórico Ultramarino,
em Lisboa, esses locais que
alguns fingem que não existem, na vã esperança de que os papéis, por serem
velhos, se autodestruam por vergonha. Para
os negacionistas de serviço, sempre
tão ofendidos com a menção do crime, mas raramente com o crime em si Celso
Ribeiro foi cristalino: «Falar disso não é dividir o país. É libertá-lo de
uma mentira cómoda.»
E.P. Thompson escreveu que a
História é o protesto dos vencidos contra o silêncio dos vencedores. Nesse dia,
Ribeiro encarnou esse protesto com serena ferocidade. Lembrou-nos que falar não
é trair os heróis da independência,
é honrar os que foram silenciados para que outros falassem em nome de todos. Há quem chame a isso “revanchismo”, como se a memória fosse um ato de
vingança, não de justiça. Mas revanchismo é quando se usa a História como arma
para humilhar. O que Ribeiro pediu foi o contrário: um gesto de reconciliação.
Um ato simples, mas,
estranhamente, impossível até hoje, de
pedir desculpas. Um reconhecimento público das vítimas. Uma reparação simbólica
capaz de sarar uma ferida que continua a latejar no presente.
Foi o que poucos políticos ousam
fazer: roubou a festa dos foguetes fáceis para devolvê-la ao povo. Não
transformou a independência num bibelô para veneração passiva, mas num convite
vivo à democracia, não como
fórmula mágica ou fetiche institucional, mas como cultura. Como hábito. Como
exercício permanente de memória.
Carlo
Ginzburg, que tanto apreciava farejar rastos nos silêncios, dizia que o
historiador não é apenas quem regista os factos, mas quem interroga o silêncio.
Celso Ribeiro, naquele dia, interpelou o silêncio oficial. E a resposta, aquela cara de quem comeu e não
gostou, foi um desconforto
merecido. Reparação não é vingança. É higiene moral. Porque, sejamos francos, festa sem memória
é ressaca anunciada.
Ele enfrentou os oportunistas da
amnésia, esses que berram
“chega de falar nisso!”, os moralistas de ocasião que gostam de cozinhar a
História “a gosto”, como se fosse receita gourmet para banquete do poder.
Esquecem que a História não é cozinha: não se escolhem ingredientes conforme o
paladar dos comensais. A verdade é
indigesta para alguns. Mas, como dizia Hobsbawm, “a História não existe para
nos tranquilizar.”
Celso Ribeiro fez um discurso
para adultos. Para um Cabo Verde que resista à tentação de se infantilizar com
mitos convenientes. E é bom lembrar,
mesmo que arrisque azedar o buffet, que há quem aspire a Primeiro-Ministro e, com ar de estadista de
taberna, defenda a reabilitação de velhos milicianos com currículo de
intimidação. Para quem entende que
celebrar é, antes de tudo, não esquecer. Porque, e aqui vale lembrar Galeano, “a história nunca diz adeus. Diz
até logo.”
Ele lembrou-nos, sem rodeios nem
floreados, que não há independência sem liberdade. E que liberdade só merece o
nome quando é para todos, até
para quem discorda, até para quem insiste em lembrar. Porque liberdade que
exclui o incómodo é apenas outra forma de domesticação.
Se a
política cabo-verdiana quiser guardar algo deste discurso, no meio dos papéis, protocolos e selfies
comemorativos, que seja isto:
celebrar 50 anos não é fechar um livro e colocá-lo num altar para veneração
passiva. É ter coragem de o reler. Página por página. Mesmo, ou sobretudo, as que doem. Porque só assim se constrói um país adulto.
Um país capaz de se olhar ao
espelho sem pestanejar. Capaz de reconhecer as cicatrizes sem tentar
escondê-las com pó de arroz patriótico. Capaz de se reconciliar consigo mesmo,
não porque esqueceu, mas porque se lembrou.
Como
diria Eric Hobsbawm, a História não serve para nos embalar, mas para nos
acordar. E se quisermos, de facto, honrar este meio século de independência,
talvez devêssemos aceitar o convite implícito nestas palavras, o convite para sermos um país adulto, um
país inteiro, um país que saiba que recordar não é azedar a festa, mas garantir
que ela faça sentido.