Abraão Vicente, insubmisso criador
Abraão Vicente |
Abraão Vicente talvez seja, neste momento da história de Cabo Verde, o homem mais lúcido e contraditório que o país produziu. E por isso mesmo, mais necessário. É difícil classificá-lo, mais ainda ignorá-lo. O seu nome vibra entre corredores de ministérios, paredes de bibliotecas, murais de exposições e palcos improvisados onde se lê poesia à sombra da brisa do mar. Há nele uma inquietação trazida de piku sor do mundu, como se as vozes de Assomada, onde nasceu, ainda lhe batessem no peito como um tambor de chamada permanente.
É poeta e político, dois ofícios que, em quase todas as geografias, se anulam mutuamente. Mas não em Abraão. A sua poesia pulsa na política e a sua política respira versos, com todas as contradições e virtudes que isso acarreta. Ele não é homem de trincheira: é homem de fronteira. Onde a esquerda da sua infância ideológica dava as mãos à nostalgia, ele preferiu virar à direita, mas uma direita com leitura, com arte, com insónia e ética. A família, supõe-se, tremeu com a escolha. Mas Cabo Verde ganhou um estranho caso de coragem intelectual.
Abraão Vicente é, acima de tudo, alguém que não se cala. E se fala, é porque pensa, o que já é dizer muito num tempo onde os discursos políticos são feitos para encher calendários e fingir ação. Ele não finge. Nem na literatura, nem na gestão, nem na vida pessoal. Homem de família, protetor, cristão e conservador em muitas coisas, é também um dos rostos mais duros da política cultural do arquipélago. Há quem o tema, há quem o admire. Mas ninguém lhe passa ao lado. Ele aparece onde não se espera, diz o que outros temem. Quando o mar político se agita, ele não rema para trás. Muda a vela.
O jovem que começou como jornalista e artista plástico foi entendendo cedo que o país precisava mais de pontes do que de retratos. Não que tenha deixado de pintar, pintou a cultura cabo-verdiana com políticas estruturantes, com programas de acesso, com academias de arte que nasceram do nada, como quem ergue um poema em pedra. Como ministro da Cultura e do Mar, cargos que mais parecem metáforas do que pastas ministeriais, fez o que poucos fazem: ouviu os artistas, os pescadores, os marginalizados do progresso, os órfãos da modernidade, e com isso redesenhou estratégias de futuro.
É por isso que ele é tão difícil de seguir e tão fácil de escutar. Porque há coerência na sua mudança, lógica na sua rotura. É como se vivesse permanentemente num estado de criação. Ao invés de deitar a toalha ao chão, ele transforma a toalha em manifesto. Desafia o sistema sem destruir a ordem. Questiona a cultura sem trair a tradição. E talvez por isso não caiba bem nos rótulos políticos fáceis. Porque ele pensa, e pior ainda: pensa alto. e neste momento esta a prestar um grande esclarecimento ao país que parece querer correr para um passado desabonatório, é que o fácil normalmente sai caro.
Quando aceitou ser Ministro do Mar, muitos torceram o nariz. Mas foi no mar que mostrou o que é governo com profundidade. Enquanto outros se perdiam em reuniões de protocolo, ele tratava de cais, de pesca, de política azul, de internacionalização da costa cabo-verdiana. E quando voltou ao Parlamento, depois de ter perdido as autárquicas da Praia, fê-lo com a mesma dignidade com que um poeta se ergue após o silêncio, sem rancor, sem espetáculo, apenas com o desejo teimoso de continuar.
A sua obra literária, embora menos visível nos jornais do dia, é das mais sinceras da sua geração. Escreveu cartas improváveis à ex. mulher amada, publicou poesia de labirintos íntimos, fez literatura como quem sopra brasas para manter a alma quente num país que às vezes esquece os seus. “Amar sem medo” é o seu livro mais revelador: não é só sobre amor, é sobre convicção. Abraão escreve como vive: sem pedir licença. E governa como escreve: sem perder a lucidez do espanto.
Ele é um daqueles raros exemplos de homem público que não trai o artista que carrega dentro. E talvez por isso, seja também dos poucos políticos que não se deixam vencer pelo cansaço. Porque há sempre mais uma ideia a propor, mais uma lei a questionar, mais um poema a semear em terra de cinismo. É essa resiliência, essa capacidade de sonhar como um menino e trabalhar como um velho sábio, que o faz único.