Halloween party ideas 2015

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Artesã Da Graça


KróniKa de Mário Loff


Pela terceira vez, assisto a "Um Concelho, Três Ritmos" em Santiago. Já não é apenas um espetáculo, mas um ritual. Como quem espera a primeira chuva, o primeiro voo das andorinhas ou o cheiro do milho assado nas ruas e água de cana a escorrer no céu da boca. Já faz parte do ADN das gentes da ilha, que em cada março se preparam para este batismo de sons e reminiscências.

Santa Cruz, essa cidade que se alcança por duas vias, que se atravessa com o coração em sobressalto e se sente como um aperto no peito. Ali, a tradição não se aprende, herda-se. Respira-se no ar, pulsa na terra e nas vozes que falam a língua da raiz. Ainda antes de o dia espreguiçar os primeiros raios, os olhos remelentos dos madrugadores já apelam à resistência do sol. O calor chega contrabandeado pelo amor, enquanto os canaviais mastigam o vento, antes que as marés decidam mudar os seus caprichos.

Foi ali que nasceu o homem que revolucionou o funaná. Foi preciso morrer para que a imensidão da sua música se revelasse por completo. Hoje, ele caminha visível na praça com estilo e sua estátua, presente nas memórias, nos corações e nas teses académicas que enchem prateleiras em bibliotecas nacionais e estrangeiras. Santa Cruz não partejou um género, mas três: batuku, funaná e finason. Não nasceram de um golpe de sorte, mas de um parto melódico, onde cada acorde se infiltrou na carne e nos ossos do povo.

Santa Cruz não é uma cidade qualquer. É uma cidade que já foi celeiro da ilha, que alimentou bocas e sonhos, que deu de beber ao gado e ao povo. Mas não é apenas um passado fértil que a define – é um presente vibrante, resistente e ritmado. Aqui, a vida dança entre a enxada e o acordeão, entre o campo e a praça, entre o batuku e a reza.

Vi isso ao chegar. Vi quando andei de barraca em barraca, em busca do autêntico, do que é nosso, da república “independente” de Santa Cruz, onde tudo tem um sabor de identidade. E lá estava ela, a mágica da cidade, a artesã mais internacional deste chão. Entre restos de palha de banana, bambu e outras miudezas, molda o que é doméstico e transforma o ordinário no extraordinário. A vida ganha forma nas suas mãos calejadas, que suam para dar de comer aos dias dos filhos.

Os ensaios obrigaram os jovens a olhos mais atentos, a gestos mais apurados. E as faixas, imensas, altíssimas como a própria grandiosidade da música, traziam letras garrafais, cores berrantes, misturadas numa coreografia involuntária ao sabor do vento. Quando ele soprava, as bandeiras dançavam antes mesmo de a festa começar. E aquelas ruas continuavam em curvas sinceras e permanente ziguezague. 

Santa, não é Cristo, mas tem Cruz. Ali, sente-se um ar suspenso, um misto de festa e desconfiança. Quem recusa um pingo, um prato, um pastel, um chikuiti grelhado, uma bênção ou um sorriso largo, levanta suspeitas. E a partir das dez da noite, a multidão invadia a praça. Agora sim, era de certa forma a celebração do grande Katxaz. Um mar de gente, negra, colorida, jovem, vibrante, possuída pelo ritmo. As melodias de Mário Lúcio e das batucadeiras subiam aos céus, e a cidade tremia. As repercussões atravessavam as ruas, infiltravam-se nos becos, misturavam-se aos uivos dos gatos e, por instantes, até os finados esqueciam-se da sua inexistência.

Passou por mim uma mulher que, de manhã, me contara a origem do nome da sua filha. Ela nascera com outras seis crianças, mas apenas ela sobrevivera. Chama-se Resistência. Um nome que é bandeira, um grito, um desafio à própria morte. Fiquei triste pelas vidas perdidas, mas logo outra mulher me reconheceu e ofereceu-me uma freskinha de tambarina fresquinha. O povo de Santa Cruz é forte como a tambarina: intenso, persistente, indomável.

Essa mesma senhora, cujo nome já me escapa, falou-me da alegria renovada, das praças restauradas, das construções que enchem os olhos de cor. "E vale a pena?", perguntei-lhe, "vale cada imposto pago, cada vigília cidadã?". A resposta veio rápida e segura, como um sorriso. Igual àquele suco único que se faz em Santa Cruz e que me ofereceram num bar de fachada azul, onde a balconista era a própria encarnação das filhas das rainhas africanas. Por um instante, julguei que fosse filha da Da Graça, porque, realmente, tinha graça. A Da Graça é mãe de todos os santacruzenses quando sorriem, e eles sorriem a toda a hora, porque a vida nunca deve perder a graça. Ela é rosto e lenda viva, indissociável da cidade, a seguir ao próprio Katxaz.

Foi então que vi o meu amigo de infância, o das caçadas de bichos e brincadeiras de criança. Pagou-me um suco de cana. E esse suco era o reflexo da inovação daquele povo. Depois, veio a moréia, daquelas que custam os olhos da cara, simbolizando os espólios do desenvolvimento. Há coisas que ficam caras, mas valem cada escudo.

Até para o ano, Santa Cruz. Que nunca te falte ritmo, nem resiliência. E que, na próxima festa, as ruas voltem a estremecer com o teu batimento inconfundível.



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