Éramos conhecidos por andar juntos, por não aceitar desrespeito nem abuso. Chamaram-nos de tudo: mokerus, salbaxus, malcriados, antissociais. Mas ser “antissocial” fora de portas até tinha o seu charme era a nossa marca de resistência, uma espécie de luxo político, um casaco malcheiroso mas cheio de estilo. Quem chegava com respeito, ficava. Quem vinha com pose, levava corretivo não com comunicados da Câmara, mas com o poder anónimo da comunidade.
No meio da dureza, havia festa. As crismas em julho viravam quase congressos populares: mesas na rua, kaldu pexi a rebentar as costuras das panelas, danças intermináveis e jovens com intenções sérias ou nem tanto. A fama era simples: quem viesse brincar com as moças do bairro, sem respeito, ficava a saber o que era disciplina popular. Um bairro que criava mais professores por metro quadrado do que muitas capitais africanas. E tudo isso sem Estado.
Depois, vieram os anos 90: água, luz elétrica, estradas, organização. Descobrimos que havia mundo para lá da vila, mas nunca perdemos a união. Até que um dia nos roubaram o campo de Txam Riba. Roubaram-nos o coração do bairro. Levaram o símbolo e deixaram a urbanização.
E chegamos ao presente, aos últimos cinco anos: um bairro arrumado, organizado, com quadros e doutores, mas também com jovens deixados à sua sorte, usados em campanhas e descartados como latas de cerveja no chão. A PJ invade, prende futuros ainda em gestação. As drogas circulam, as bebidas pesadas substituem a revolta e a alma virou negócio barato.
O mais engraçado ou trágico é que este foi o bairro que deu ao atual presidente alguns dos melhores resultados eleitorais. Aqui houve campanha, bandeira, promessas e até vereadores. Hoje, há abandono. Os jovens olham para os outros bairros com programas camarários e atividades financiadas, enquanto Colhe Bicho serve apenas para duas coisas: votos e relatórios da polícia.
Dizem que temos partidos, mas o que perdemos foi a alma. Vendida em discursos de humildade inúteis, esquecida em cerimónias de “faz de conta”, corrompida pelas drogas que substituíram a dignidade.
As autoridades que nos lêem se é que leem devem ser lembradas disto: O Estado só aparece em Colhe Bicho quando quer votos ou quando vem de farda e arma na mão.
O bairro que outrora criou professores, atletas e líderes comunitários é o mesmo que hoje exporta jovens para as prisões.
A alma que foi motor de revolta virou estatística de crime.
Mas Colhe Bicho não é só desgraça. Ainda respira. Ainda há velhos que contam histórias de união, ainda há mães que seguram a vida com mãos de ferro e ainda há jovens que sonham, mesmo quando o Estado insiste em tratá-los como pesadelo.
A pergunta é simples: até quando o Tarrafal vai permitir que um dos seus bai
rros mais históricos seja apenas visitado em tempo de campanha? Até quando a Câmara vai fechar os olhos à degradação, fingindo que “urbanizar” é suficiente? Até quando o Estado vai usar Colhe Bicho como vitrine de pobreza para relatórios internacionais, em vez de a reconhecer como o que sempre foi — uma comunidade com dignidade, memória e voz?
Porque Colhe Bicho não nasceu com Estado. E, se for preciso, também não morrerá com ele.
Postar um comentário