Em transito, até logo PT. Por Mário Loff
Muito antes de ouvir sobre o poder de silêncio praticava esta atividade de se ficar num mundo sem som e cheio de coisas prontas a terem a voz. Há muito tempo que o silêncio entrou no meu dia a dia por escolha e pela condição de quem resolveu tapar mais a boca e abrir mais os olhos, nisso, acrescentei os livros como amigo e como arma para matar as minhas simples e profundas ignorância. Do contacto intenso com os livros, acabei por escrever poemas e contos, aprender a ver as coisas, sentir a humanidade dos outros, por último aprender a amar os outros sem que ele saiba. Nesses dias estou em Portugal para falar das minhas poesias e criações num festival de cinema, FICCA 2018.
A experiência de estar aqui a aprender e a partilhar, enche-lhe e retira-lhe ao mesmo tempo, o que já não vale a pena ter no íntimo de nós. Aprendi que é necessário classificar certas coisas de inútil. Nesses dias tenho-me sentido fraco. Os meus olhos têm-me posto à prova desde que a leitura começou-me a roubar a ignorância. Tenho lido a “máquina de fazer espanhóis” um livro para todos os leitores e toda a humanidade que inova e se renova. Lá vem o Valter Mãe com uma frase terrível que destampa o livro. “Somos bons homens” há muito tenho tentado saber ser bom homem. Como se deve ser um bom homem? Sou de uma ilha dividida em regiões e vive as suas próprias assimetrias, aliás as divisões nasceu com as ilhas e vive nas pessoas.
Como se deve comportar um bom homem? Sou um cabo-verdiano de Tarrafal, vivo no Tarrafal. Como se deve ser um bom homem, a onde um dia a terra abriu a boca e veio todos os alicerces e feiuras do estado novo para acampar os desterrados antifascistas e depois os africanos, estou em Portugal e não se sente o país que teve homens iguais aos outros com princípios e falhas, e nós das ilhas de Cabo Verde somos a prova vida das falhas desses homens. O ex.campo de concentração representa a falha dos homens.
Tenho limitado a mexer pouco os dedos na tecla, desviar o olhar e fingir que não vejo, nisso, tenho sentido os vírus da imbecilização a chegar-me aos ossos. Tenho recusado. Eu, cada vez mais me tenho casado com a verdade, não é que acerto sempre.
Tive quase um mês em Portugal, fui em 2018 e vim em 2019. Tenho tentado não sentir, tenho tentado não ver todas as coisas que a paisagem humana tem-me enviado em imagens, voz, sons dos motores de carros de alta gama e dos simples veículos que cospem fumo para a preocupação dos ambientalistas. Tenho visto olhares das pessoas me atravessando os pés, perna e os restos do meu corpo. De início não entendia. E por ter encarado um grande amigo e, depois de ter posto a conversa em dia e explicou-me as coisas e costumes da terra, atualizei-me sobre os gostos e as modas, confesso que não sou nada dado as modas, mas, sou capaz de adaptar-me a, situações. Tu não usas marca e andas a pé, por aqui não é la tão normal esse teu costume, perguntas e afirmações frequentes daquele país para quem vai de novo ou esta em férias. Para mim esta situação é normal para pessoas que já desenganaram com essas modernices em exagero. Pessoas loucas, mas, humanas. Um dos assuntos que mais falamos é sobre os estilos de vestir para se sentir bem e, logo ele disse-me que tinha de usar marcas de roupas e sapatos, pensei logo que isto esta conectado ao consumo e em cada rua e parede encontra-se publicidade que te obriga a consumir e a se rachar ao meio para poder ter as coisas e manter no meio das novidades e na moda, eu sempre procuro ver nas pessoas mais velhas, tenho esse habito de ser e ter costumes dos mais velhos.
Sobre a marca provavelmente sou dos que mais têm marca e uso-as todos os dias e não tenho os dado folga, foi umas das respostas que dei ao meu amigo. Quando ando falo com todas as pessoas, comprimento, observo, escrevo poemas, noto momento, fotografo, faço momentos se transformarem em momentos de poesia, tenho sentido azias das outras pessoas, sou especialista em decifrar pessoas felizes, normalmente eles não dizem, não deixam transparecer, pessoas felizes sentem-se pelo cheiro. Num país que as pessoas não respondem bom dia é difícil usar as marcas humanas, em Portugal não respondem Bom dia e os idosos são tristes e muitas vezes abandonados a beira dos seus próprios acostumado silêncio.
As vezes, um bom dia abre uma porta de ferro ou um bom coração esquecido já enferrujado, é fácil se chegar ao coração, esta espalhada em quase todas as coisas, na música, nos desenhos, nos livros, nos presentes do Dia dos Namorados, nos desenhos do aluno retraído. Amor e coração é uma marca.
Por isso tenho usado as minhas marcas, mas, tenho vestido bem, até fui até loja Primark comprar roupas baratas e de boa qualidade. Ali senti-me estranho, estavam todos os tipos de pessoas e de todas as idades, inclusive os que vão só para vestir, fotografar e postar na rede social, em toda essa situação tirei notas para postar na minha vida de que consumimos para apressar a nossa morte, hoje estamos juntos e felizes e conhecemos milhares de pessoas e amanham nada poderá ser igual ou simplesmente não estaremos, por isso sente-me estranhos sabendo que todas aquelas pessoas um dia não estarão ali e, novos que virão talvez repetirão as mesmas coisas que repito agora cheios dos mesmos vícios e com mais humanidade.
Cada vez que observo um idoso rodeado dos seus familiares ou na companhia do neto, ou filha, logo vem-me a imagem daquele idoso no parque bem coberto pelas largas roupas absolutamente silenciosas, tudo nele se resumia ao barulho da muleta e aquele sobretudo preto. Aquilo incomodou-me. E pergunto-me se não incomodava os seus familiares ou quem o conhece. Aquilo incomodava-me como se ele fosse as minhas dores nas costas ou dores de barriga a sair-me por fora. E lembro-me da passagem do livro de Valter Mãe escreve uma coisa de forma magistral sobre envelhecer.
“e só não tornamos perigosos porque envelhecer é tornarmo-nos vulneráveis e nada valentes, pelo que enlouquecemos um bocado e somos só como feras muito grandes sem ossos, metidas dentro de sacos de pele imprestáveis que já não servem para nos impor verticalidade nem nas mais pequenas batalhas”
Pois, este mal que nos carrega, esta coisa que vestimos ao descobrirmos que observamos até os nossos olhos envelhecerem. Tenho atravessado aquele parque nos últimos dias em direção à babilónia. Todos os dias ia a pé e voltava a pé. A minha preocupação não passava daquilo. Ver. Ver e observar as coisas que se residiam no mundo e fora do meu quotidiano. Tenho visto os reformados na praça da minha cidade. Naqueles dias tenho visto reformados no parque de uma cidade de outro lado do mundo e num país cada vez mais misto. Estão eles todos os dias naqueles bancos de mogno húmido devido a frio de manha. Mãos a tremerem, olhos em baixo e de bengala na mão. Tenho passado a frente deles, por esses dias, deixei de cumprimentar-los. Naqueles dias pouco mais de cinco pessoas me responderam. Bom dia. Não cheguei a visitar Portugal de norte a sul para dizer que não se responde bom dia em Portugal, mas, vi idosos abandonados, tristes, deprimidos e sozinhos. Miseravelmente tristes e sozinhos na companhia de um cão a dormir e carros a passarem com músicas, havia mais intimidade entre carros e os seus donos do que um único olhar para aqueles velhos. E mordo-me sempre as beiradas do meu coração ao lembrara disso, mas não esqueço que não respondem. Bom dia. Os dias têm sido de solidão, eu mesmo tenho sentido aquilo ao caminhar no parque. Na parte norte tem cachoeira que atravessa todo o parque que desagua pela ribanceira a baixo, na parte norte uma estátua de homenagem aos bombeiros e a noite reflete a luz no fundo do lago e atrai a presença das pessoas. Tenho gostado daquilo.
A imagem da terceira noite em Portugal nunca me sairá da cabeça. Provavelmente aquele senhor continuara a se esforçar para sempre os seus paços frágeis na minha cabeça. Andava eu acompanhado de um amigo a procura de um hotel ou pensão, coisa para dois ou três noites. Entramos numa estrada mal iluminada e piso gasto e esburacada o que me lembrou algumas injustiças com o nosso município. Lá estava ele arrastando as duas moletas para frente, depois os dois pés em sintonia da moleta, cochicha e avança mais um passo a para frente. Fico parado a vê-lo, fico espantado com a velhice do homem. Mas, talvez não seja isso. Mais tarde conclui que é a coragem do homem a andar as onze da noite no parque, em silêncio, com uma carapuça esburacada na cabeça e não responde boa noite, apesar de já saber que nunca respondem.
— deveria ajudá-lo. Perguntei ao meu amigo.
— o que deveríamos fazer? Nada, quando se quer ajudar não se pergunta, ajuda-se. Respondeu ele.
Depois da resposta do meu amigo, veio-me a cabeça uma perturbação. Será isso um teste? Naquele último dia tinha visto uns vídeos nas redes socais sobre ajuda ao próximo, o bem que as pessoas fazem aos outros. Observei por todos os lados se alguém nos seguia, se aquilo era uma pegadinha. Mas não, não era. O homem já ia a alguma distância, então, pus-me a vê-lo a andar com todo esforço e coragem, baixinho e de calças rasgado no pé. Depois de concluir que nada do que tinha pensada era verdade, veio-me novamente a culpa de ver isso e não poder ajudar. Mas o que sei dele? Sou novo na cidade, o que poderia fazer? Tenho feito essas perguntas até hoje. Aos poucos o homem perdeu-me de vista no meio dos prédios a direita e pardieiros a esquerda. O que é que pode fazer por uma pessoa num país que não se conhece? Verdade é que nem sei e, nem me dei a hipótese de descobrir.
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