Às vezes, ficamos no nosso canto a tentar compreender o mundo. Tentamos conquistá-lo, nem que seja apenas uma parte próxima de nós, a partir deste burgo tão norte e tão Tarrafal. Mas a história, essa velha senhora de memória longa e seletiva, parece rir-se da nossa ilusão. Há mais de 565 anos que o norte da ilha de Santiago aguarda a promessa da modernidade, enquanto o sul, com sua voracidade comercial, continua a ditar o ritmo do país. Desde a chegada de António da Noli e Afonso, acompanhados dos seus marujos tristes e rabugentos, que o Tarrafal permanece à margem das rotas de desenvolvimento. O que nos resta, então? A eterna sensação e utopia de que esta é a terra das oportunidades e potencialidades. Mas, sejamos honestos: o que se tem feito dessas potencialidades são as mesmas obras vistosas, erigidas para iludir os incautos e depois abandonadas ao esquecimento.
Aqui, neste Tarrafal meu e teu, há coisas que desafiam a lógica. Mas desafiar a lógica é, talvez, o exercício favorito do poder. E dentro dessa sobreposição de poderes, ninguém assume realmente a responsabilidade. Porque o poder aqui é a moeda de troca das promessas eleitorais, uma dança de cadeiras onde os novos ocupam os lugares dos velhos e perpetuam os mesmos vícios. Desde os tempos do branco e preto que a política tem sido uma procissão de missa sem padres, mas com muitos compadres. Teve um que tentou mudar algo e perdeu o poder. O atual, bem, este recuperou as tradições impostas e fez delas um espetáculo de ilusionismo político. A auditoria prometida desde 2000 e tal nunca passou de um anúncio, um truque de desaparecimento tão eficaz que nem Houdini conseguiria replicar. Com isso, ilibou os antigos dirigentes que pervagaram no município, se tornaram limpos.
Agora, os novos senhores do poder tornaram-se artistas na arte da manipulação. São requintados em ludibriar, sabem como moldar a população com mansidão, enviam capachos para atormentar aqueles que se atrevem a questionar o absurdo. São os polícias da memória, vigilantes incansáveis da amnésia coletiva.
E então, surge mais uma obra. No mercado de artesanato e cultura, as máquinas começaram a roncar, mas ninguém sabe bem o que estão a construir. Não há esclarecimentos, não há planos divulgados, não há informação sobre a função da obra, o dono, os beneficiários, se será uma construção definitiva ou desmontável. O que se sabe, sussurrado pelas ruas, é que se trata de mais um pagamento de promessa, uma oferenda ao altar da militância.
O problema é que a lei sobre a proteção do património é clara, tanto a nível nacional como internacional. A UNESCO estabelece diretrizes rigorosas para a preservação do património, e a Lei nº 85/IX/2020 de Cabo Verde reforça a necessidade de proteger os bens culturais e arquitetónicos. Mas de que vale a lei quando a prática a ignora descaradamente? Já se tentou, em tempos, erguer uma construção nesse mesmo espaço, e a câmara recusou. Foi então que um artista, ofendido com a decisão, resolveu marcar o território com uma pintura pomposa. Quando se sentiu desrespeitado, vandalizou a obra com tinta negra, a sua própria imagem, como quem proclama que esta cidade está muda e calada. Ou, talvez, tenha sido uma premonição: a construção que agora se ergue parece cumprir a profecia do artista.
Exemplos desse tipo de descaso estão por toda a cidade. O património histórico tem sido destruído a um ritmo alarmante, engolido pela negligência e pela ganância. Não há muito tempo, uma obra na igreja do Tarrafal provocou a indignação geral, denunciada com pompa e circunstância pelo Mário Loff. Custou-me a reputação. Chamaram-me anarquista, confundiram-me com agitador. A ferida já cicatrizou, mas a mancha ficou. E aqui estou eu, mais uma vez, a fazer a mesma “animação” outros protagonistas, a repetir a mesma análise. Será que desta vez nos ouviremos a tempo? Será que aqueles que ocupam os lugares de decisão, oposição, situação e assembleia, terão a decência de fornecer informações sobre esta nova obra antes que seja tarde demais?
Que pensem profundamente, que assumam a responsabilidade. A história é impiedosa com os que ignoram os seus erros. O Tarrafal, este meu Tarrafal, não merece ser mais um exemplo de desleixo e descaso. Sejamos, ao menos, dignos do nosso próprio passado. O certo é que o nosso “príncipe” de todos nós já foi. Só espero que a Rosa, que há mais de 10 anos ganha pão naquele espaço com a grelha, não seja removida.
Mário Loff


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