Como antes já tinha escrito
há algum tempo, o Tarrafal tem aquele charme de cidade, antes vila, onde até
as pedras sabem demais, mas são caluda, há demasiado
tempo. Cada beco conhece um segredo, cada praça e banco bem identificado tem um palanque (in)visível e
cada estrada sabe o que é ser prometida, adiada, esquecida, relembrada, e
depois adormecida num despacho qualquer.
Estamos a viver tempos onde a política se faz
como se faz o funaná talvez até umas sangazuzas
em casamentos: com um passo à frente, dois para o lado e muitos tropeços
que ninguém quer assumir. A diferença é que o funaná é honesto e sangazuza é uma espécie zanga. Já os
discursos…
A verdade é simples: criámos um exército. Não
um com botas e fuzis com vontade de disparar
o fim da alegria, que esses, coitados, só marcham em desfiles, mas um batalhão de comentadores da rede, repetidores de verdades recicladas, clones
políticos com microfone nos dedos e slogan nos dentes bem ensaiados e repetidos em algum comité central nos gabinetes
municipais.
São os “copistas da verdade paralela”: gente
que repete até acreditar. Mentiras? Só até à segunda-feira. Na terça já são
dogmas.
Este exército repete que "eles" — a
oposição — são os maus, e "nós" — os novíssimos salvadores de calça
engomadae perfumados com cheiros vindos
da novíssima loja da primark da capital, é que somos os bons. O velho enredo da
telenovela do poder. Entretanto,
as obras?
— A rua
pedonal, no futuro terá o seu impacto esperado a Santa Engrácia dos nosso
tempos , esperado há cinco anos? Está em obras há tanto tempo que já devia
pedir bilhete de identidade.
E claro, enquanto se adiam aumentos salariais
por “falta de verba”, há sempre verba para mais uma viaturazinha com ar
condicionado. Duas, três… Sete mil contos, ainda se ouve a frase mágica: “Foi
tudo dentro da legalidade.” Legalidade, neste contexto, é só o nome simpático
que se dá àquilo que se faz porque pode, mesmo que não se deva.
Lembro, a título de crónica e não de ofensa,
que o Presidente da Câmara Municipal, que tem
dias de Sócrates e outros de coach motivacional, reapareceu recentemente para largar umas pérolas discursivas com mais
raiva que razão. Está no vídeo. Circula. Ganha views. E é ali, naquele momento,
que percebemos que a raiva também é um plano de comunicação.
Mas o mais poético, se me permitem usar essa palavra num texto sobre política local, é que ele próprio, no seu primeiro mandato,
prometeu uma auditoria à Câmara. Palavra de honra! Prometeu com a convicção de
quem jura que segunda-feira vai ao ginásio. Nunca mais se ouviu falar da tal
auditoria. Talvez esteja guardada numa gaveta com as medalhas do tempo de
juventude.
Enquanto isso, as sessões da Assembleia
transformaram-se num misto de novela mexicana e “stand-up” com má dicção. Quem
discorda é acusado de estar “contra o desenvolvimento” contra o sôr presidente. Como se pensar fosse traição. Como se
questionar fosse crime. Como se o Tarrafal fosse um aquário e nós os peixes
decorativos, bonitos,
silenciosos e sempre a girar em círculos.
Sim, senhor Presidente: fui um dos que
reclamou. Reclamo outra vez. E volto a lembrar, com o respeito que se deve a qualquer servidor público, que o discurso de “não há dinheiro” não
combina com viaturas novas, salários gordos para uns e atrasos para outros. E
sobretudo, não combina com arrogância. A arrogância é o perfume dos
incompetentes. E não, isto
não é despeito. É cidadania. O Tarrafal não precisa de muralhas ideológicas,
mas de pontes. Pontes para as zonas esquecidas, para os jovens sem futuro, para
os trabalhadores que já não acreditam em nada.
E olhe que voltarei ao assunto, com mais
ironia se for preciso, com mais poesia se for justo. Porque amar uma terra não
é bater palmas. É bater o pé. E fazer barulho quando ela está a ser maltratada. E fiz no passado e volto a fazer, é a minha maldição e
faça questão que ela seja assim.
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